segunda-feira, 23 de setembro de 2013

CHICO


Ressuscitei.
O olho esquerdo abriu rangendo feito a porta da Família Addams.
Enquanto oito Dumbos faziam ninho na minha cabeça.
Rastejei para o banheiro desembrulhando o estômago como quem desfaz um origami de mármore.
Fiz cocô preto por conta do vinho tinto e podre por causa do ovinho branco.
Em vez de bochechar o Listerine, engoli.
Escovei os dentes como Super Homem usando creme dental de kriptonita.
Escorando-me pela pia, cuspi seis babuínos, um ainda vivo, fugiu.
Meu reflexo no espelho fazia que não com a cabeça em sinal de desaprovação.
E para piorar, tinha sangue coagulado na porra de um galo gigante no meio da minha testa, que latejava num ritmo de relógio antigo. Sombrio e eterno.

- Onde Diabos eu arrumei isso?

Que fase.

Mas também, tinha sido uma noite difícil.  Fim de namoro é foda, né?
E ainda fui eu que terminei, o que torna tudo um pouco mais complicado.
Não sei se por insegurança, vaidade ou intuição, mas sempre percebi muito antecipadamente quando meus relacionamentos estavam prestes a afundar.

E me aprimorei na maléfica arte do rompimento.

Quer terminar com alguém? Então não adianta ficar conversando sobre os erros do outro. Isso é papo de reconciliação, tentativa e amor.
Terminar é no cutelo do açougueiro, na exclusão do facebook, sem dó.
Mas quando a outra pessoa não aceita, aí não tem jeito...
Só usando a milenar estratégia calhorda de assumir toda a culpa.
É covarde, mas funciona.

- A culpa é minha que infelizmente não sinto a mesma coisa que você...
- “Não tem problema, eu gosto por nós dois!”
- ...mas você precisa de alguém que te mereça...
- “Não preciso, não!”

Dica: Se a pessoa diz que não te merece, acredite nela.

A mulher era mais perseverante que pipoca em boca de banguela.
Eu devia ter imaginado, ela sempre foi meio obsessiva.

Nessa noite, para justificar e convencê-la a aceitar o fim do namoro, falei  tão mal de mim mesmo que fiquei até em depressão.
Me chamei de egocêntrico, imaturo, cretino, canalha, medíocre, safado...
E cada xingamento vinha regado por uma caneca de vinho da casa.
Embebedei-me e afoguei-me numa auto depreciação explícita.
Teve uma hora que o garçom até me abraçou condolente.
Confessei tantos pecados que o próprio Jesus me apedrejaria.

- Tenho certeza que você vai arrumar outra pessoa rapidinho.

Ela cerrou os olhos, passou a mão no paliteiro de vidro em cima da mesa e ameaçou jogar em mim. Dois palitos voaram e bateram no meu peito.

Apelei para o sentimental. Trouxe-a pelo braço para mais perto:
- Lembra quando a gente se conheceu?

Recordo-me como se fosse hoje. Sol forte, calor intenso, 8:34 da manhã.
Eu estava lendo "O Alquimista". De Paulo Coelho. (Sim, e daí?)
Quando ela surgiu... 
Cheia de próclise, mesóclise, e adjuntos adnominais da paixão.
Tremulando no vapor do calor que exalava da areia.
Mesmo desfocada parecia uma linda miragem.

Mantra chinês:
- Sentaki, sentaki, sentaki, sentaki, sentaki, sentaki, sentaki, sentaki...

Ela sentou.
Na minha frente. E olha que tinha bastante lugar em volta.

Infantil e animado, fechei o livro para não perder o grande espetáculo:
Os dezenove minutos que algumas mulheres levam até ajeitar a canga na areia, ficar de biquíni e passar o protetor solar.
O show mais erótico e emocionante da natureza.

Você pode olhar sem ser evasivo e tarado, claro!

De repente ela olhou em minha direção como se ouvisse meu pensamento. Tipo um suricato cheirado.
Desviei o olhar e pus os óculos escuros para disfarçar.
De óculos escuros sou Deus, sem eles sou um mendigo pelado.

Ela pegou um livro na bolsa: "O Monte Cinco", também do Paul Rabitt.
Olha o papinho pronto aí, gente!
Vou mandar uma aproximação baseada no humor e na sutileza.
Se ela sorrir, fechar o livro e mexer no cabelo, é porque se destrancou.
Aí a gente vai casar, ter filhos e morar em nosso castelo nas nuvens.

Mas isso aqui é o Conta Uma, não é conto de fadas. Certo?

Quando dei um zoom mais minucioso percebi que havia algo estranho.
Algo no biquíni branco dela era... vermelho? Ah! Não!
Sim. A moça estava "naqueles dias", de "bandeira vermelha", "incomodada", "de regra", "de chuva", "com a visita do Anysio", eliminando mucosa, etc. 
Parecia que tinha levado um tiro de chumbinho na vagina.

Menstruação é a primeira sacanagem do mundo com a mulher.
Se fosse coisa de homem, já teríamos resolvido com abaixo assinado, com lei, com guerra, com macumba ou na porrada mesmo.
Primeiro que se homem menstruasse todo mês durante cinco dias ia ser uma nojeira só. Iríamos andar vazando sangue pela rua o tempo todo, ia ter guerra de modess nos estádios, vagabundo ia chegar com a mão toda suja de sangue pra pegar a batata frita da mesa, íamos passar na cara do outro. Nunca iríamos trabalhar com cólica... e os ataques de TPM iriam resultar em dor, morte e apocalipse.

Uma salva de palmas para todas as mulheres!

Não sei como a menina não havia percebido sua constrangedora situação, mas ela tinha acabado de voltar da água, então... deve ter vazado. Sei lá!

Pensando em como ajudá-la fiz o que qualquer homem decente faria:

- CHICO!
- “Pois não amigô!”
- Me traz uma cerveja, por favor.
- “Claro amigô! Uma gelada saindo!”

Chico é ambulante há vinte anos da minha praia preferida e me viu crescer.

Ela deitou de barriga para cima com o livro na cara e de pernas abertas. Os joelhos colados, escoravam um ao outro, saca?
Dava para ver todo o estrago. Vergonha alheia.
E aí? Faz como? Avisa? Não avisa? Finge que não viu?

Virei a latinha de cerva e deixei a língua se debater feito peixe fora d`àgua.

- Júlia Monrache?
- “Oi? Não.”
- Calma aí que eu vou lembrar: Veronika Monrache? Joana? Letícia?
- “Não.”
-  Sou muito ruim de nome, mas você é irmã da Roberta Monrache, não é?
- “Também não.”
- Jura? Caramba... qual é o seu nome então?
- “É Brida." (Digamos assim!)
- Brida, me desculpe! É que vocês são muito parecidas e faz muitos anos que não as vejo. Juro que não foi nenhuma cantada barata.
- “Tudo bem.”
- Até porque se eu fosse te passar uma cantada usaria os nossos livros como desculpa, já que ambos gostamos do mago. 

Ela sorriu simpática, fechou o livro e botou o cabelo para trás.
- E mesmo? E você está gostando?
- Sim, só que...

De repente veio uma ventania que carregou seu guarda sol longe.
Ela se levantou para resgatá-lo, mas aí eu tive que detê-la.

- Brida, deixa eu te falar uma coisa... Fica tranquila, eu tenho duas irmãs, sei o que é isso... mas eu acho que você... sem perceber... é... Menstruou.

Mermão...
A mulher arregalou uns olhos de Mangá, olhou para baixo e ficou completamente pálida, puxou todo o ar do planeta para dentro de si e se encolheu feito uma ostra. Achei que ela fosse infartar.
Apertou os olhos como se assim ficasse invisível, pulou em cima do short, calçou a sandália, catou o resto das coisas no tato e saiu na marcha atlética.
Eu ainda fui tentar confortá-la, mas ela, furiosa, me petrificou de longe tal qual uma Medusa.

Um surfista parafinado que lambia um baseado riu da minha cara.
Sem graça, voltei para o meu canto.

- “Amigô!
- Fala aê, Chico.
- “Esse livro é seu?”

Na pressa, Brida tinha deixado o livro cair na areia.

- Chico, te amo!
- “De nada, amigol!”

Peguei o livro e fui correndo atrás dela feito Papa Léguas.
Encontrei-a no ponto de ônibus, mas levei dez minutos falando sozinho esquizofrenicamente até ela finalmente me responder.
Daí a gente se conheceu melhor, nos ligamos e namoramos um tempo.

- Lembra disso?
- “Claro que eu lembro! Foi o pior dia da minha vida.”
- Nem tanto, a história até que é divertida para se contar.
- “Não acho. E além do mais, se era para dar nisso, era melhor que você nunca tivesse cruzado meu caminho nessa vida.”

Levantou-se abruptamente, bateu com o paliteiro de vidro na mesa, pôs a bolsa no ombro, jogou o cabelo para trás e mandou:

- “Babaca!”

Daquela forma, saindo assim da boca de outra pessoa me incomodou.
Devia ter levado o desaforo para casa, estava no lucro, mas sabe como é, né? 
A pessoa bêbada, sem noção do perigo... então... gritei:
- Tem razão! Devia ter deixado você sangrando no sol, igual galinha ao molho pardo.

Minha mediunidade não me ajudou a desviar do paliteiro de vidro que bateu certeiro no meio da minha testa.

E nossa linda história terminou do mesmo jeito que começou. Em sangue.

A partir desse dia, toda vez que conheço uma mulher maluca, minha cicatriz dói. 
É tipo um radar.


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Ah... E doe sangue, tem muita gente precisando.