sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A LÍNGUA QUE LAMBE O TRAIDOR



"E para o Judas traidor, a língua foi o chicote do cu."  
Ravengar 2:34 - Velho Testamento

Primeiramente veio o brilho intenso e brilhante ofuscando minha visão por alguns segundos.
Era a geladeira, que parecia mais uma procissão: Só tinha água, luz.
e a imagem de um religioso impresso no rótulo de uma solitária garrafa azul, irresponsavelmente deixada pela metade com a rolha interna, deprimida e náufraga. 
Liebfraumilch,o Romanée Conti de uma época onde vinho se bebia em caneca. 
De repente, pelo vidro da garrafa vi o vulto se aproximando.
Usando a penumbra como lençol, esgueirando-se entre móveis e esquinas, esvoaçante feito um espírito evoluído.
Sua presença seria quase imperceptível, não fosse sua respiração refrescante como a de um predador que se aproxima salivando até a presa.
O ar ficou mais frio, saiu fumaça da minha boca e meu corpo todo arrepiou.

Eu sabia quem era e o que queria.Também sabia que seria muito errado.

Ainda agachado, fechei a geladeira e os olhos, encostei a testa na porta e esperei o primeiro contato, como uma virgem.
Senti aqueles dedos macios deslizando pelas minhas costas seguindo a coluna até que a mão quente repousasse por completo sobre meu ombro esquerdo. 
Não haveria escapatória, eu seria devorado.
Trairia um amigo e queimaria no inferno por toda a eternidade.

- “O que custa?”

Mas tudo culpa do fdp do Cabeça de Bagre.

(FLASHBACK)

- “O que custa?”
- Segurar vela? Custa um milhão de dólares em barras de ouro.

Segurar vela não passa de masoquismo. 
Causa inveja, dor de cotovelo, câncer na próstata e no colo do útero.

- “Poxa, mas nós somos brother...Tipo... Cain e Abel!

C.B era um sujeito do bem. 
Só que ele era... como posso dizer sem ser malvado... Burro! 
Cada palavra proferida por ele era recebida pelos amigos como um tiro de escopeta no cérebro. (Hoje é um ótimo advogado!)

- “Você fala isso só porque eu tive hemorróida na cabeça”
- Seborréia... Cabeça de Bagre... seborréia!

Enfim...

- “Cara... Por favor, essa mulher merece o esforço...”

A mulher realmente era maravilhosa.                                                                     Parecia com a atriz Gabriela Duarte. Tinha até aquele sorriso angelical.
Era simpática, bonita e não muito exigente no quesito intelecto, pelo visto.

- “Então! Ela me convidou para jantar na casa dela para conhecer a família.” 
- Boa sorte!
- “Por favor! Eu juro que não vamos demorar! A gente janta, a mãe dela cozinha para caramba! Faz uma social com a família que ela disse ser super divertida e vamos embora.”
- Porra, Cabeça de Bagre...

Fazer companhia ao amigo que vai conhecer a família da namorada é mais que segurar vela. É plantar bananeira, meter a vela acesa no rabo, deixar escorrer cera pelo saco e enfiar o fósforo quente pela uretra.

- “Por favor, cara, eu disse a Gabi que ia te levar. Estou muito nervoso para ir sozinho. Com medo de falar alguma besteira.
Você pelo menos ajuda, faz piada, brinca e tal...”
- “Todo mundo gosta de você!”

Isso está muito longe de ser verdade, mas eu entendi o que ele quis dizer.

- Tá bom C.B. Eu vou contigo.
- “Te amo!”

Ao tocarmos a campainha, percebi que eu estava nervoso. Suando pela mão como um ator estreante que antes de entrar em cena espia a platéia por trás da cortina, com medo de subitamente esquecer o texto.
Mas foi só Gabriela nos receber com aqueles dentes perolados de quem acabou de fazer limpeza de tártaro, que tudo virou paz.
Ela era realmente apaixonante...

- “Sejam bem-vindos!”

Casa grande, antiga e pouco iluminada, com várias esculturas, quadros, tapetes e duas cacatuas desconfiadas.
Não gosto de cacatua.

Senti um cheiro de Leite de rosas que fez até meu nariz coçar.

- “Entrem! Mamãe está na cozinha e papai está lá no quarto.”

Não teria família divertida nenhuma, só mesmo papai e mamãe.
Cabeça de Bagre mentiu descaradamente.

Tanto que desviou do meu olhar assassino.

- “Bom dia, queridos!”
Se a filha parecia com a Gabriela Duarte, a mãe lembrava um pouco a Regina Duarte, só que numa versão mais para Renata Sorrah.
Falava alto, cheio de trejeitos e anéis... meio sobrevivente do Woodstock.
Deu dois beijinhos junto com um copo para cada um.

- “Tem vinho, cerveja, cachaça e acetona. É só escolher!”

Gargalhou incorporada de uns vinte e dois Sergueis*.

Cabeça de Bagre se assustou, Gabriela enrubesceu.
E eu, fiz o que qualquer ator experiente faria:
Rasguei todo o script que tinha decorado e partir para a improvisação nua e seca.

Não tinha nem jantar, mermão!  Era apenas salame e queijo.

A mãe dela era engraçada. Cagava e andava para as formalidades.
Revelou todos os segredos infantis da filha, envergonhando-a.
Já o pai, velho, broxa e cansado, levantou da cama apenas uma vez. Deu um oi sisudo e perguntou:

- “Regina! O que tem de almoço amanhã?”
- “Língua com batatas.”
- “Eu gosto de língua."

E Seu Mausoléu voltou para o sarcófago da mesma forma que saiu. 
Coçando a bunda cheio de pereba para fora do pijama.
Descobri de onde vinha o odor de Leite de Rosas.

Dona Regina fez piada com marido e continuamos o bate papo e a bebedeira até mais tarde do que deveríamos.
Foi até divertido, até que chegou a hora etílica de irmos embora.
Só que chovia. Muito!

- “Vocês não acham melhor dormirem aqui?”
- Não, não... Muito obrigado, mas nós temos que ir.
- “É cara... não sei não... também acho melhor a gente ficar... Essa chuva não vai parar tão cedo.”
- Vai sim, daqui a dez minutos acaba. Eu tenho que ir.

Fica você, cretino! Deixa eu ir embora, porra! (Disse a ele com os olhos, mexendo apenas a retina.)

O filho da puta do C.B, ganhou um belo pretexto pra dormir na casa da mulher, mas queria me arrastar junto para não pegar mal com o pai dela. Nesse dia ele estava tão recatado que nem beijar a mulher na nossa frente, beijou. Só ficaram de mãos dadas.

- Sério, gente, eu tenho que ir... Beijão, muito obrigado mesmo...

E já fui em direção à porta.

- “Deixa de ser bobo, dorme aqui na minha casa... ”
Gabriela, falando baixinho, segurou-me pelo antebraço e olhou no fundo dos meus olhos, de um jeito diferente, sabe? De um jeito... sei lá! Nem sei se isso aconteceu de verdade.  
É que ela era apaixonante... mas tão apaixonante que eu...

- Se vocês insistem... Vou ficar.

Dona Regina, de pileque, sorriu e puxou a saideira.
Depois arrumou nosso quarto e foi dormir, mas antes lançou, toda séria, uma frase carrancuda na carótida do meu querido amigo Cabeça de Bagre:
- “Nada de fugidinha noturnas! É para dormir mesmo hein!”

E num é que Cabeça de Bagre obedeceu? 
O bichinho apagou na mesma hora.
Já eu não. Virei para um lado, virei para o outro... Levantei, voltei para sala, acendi um cigarro...Olhei para rua, olhei para o corredor que levava aos quartos... acendi outro cigarro. Olhei para o espelho, olhei para as cacatuas, olhei até para a imagem de Jesus Cristo que me olhando de baixo para cima, reprovou meus pensamentos.
A chuva diminuía.

- Droga, droga, droga... que merda eu estou querendo aprontar?

Fui para cozinha sem acender nenhuma luz. No breu total.
Procurava alguma bebida que me botasse no prumo.

Mas se Deus não joga dados, o Diabo brinca de Lego.

Foi só meter a mão na garrafa de vinho que ela surgiu do nada como se eu tivesse esfregado a própria lâmpada do Aladim.

Rezei: - não faz isso, você vai se arrepender, não seja um porco...

Mas ela era completamente apaixonante, mais do que apaixonante, ela era...

DONA REGINA?!

Mermão... a coroa veio toda trabalhada no hobby de patchwork e já chegou apalpando igual revista carcerária.

- Que isso, Dona Regina? Seu marido...

Cheia de fome, lambendo a beiçola feito a bruxa do João e Maria.
- “Deixa de ser bobo, garoto, aproveita!”

Tentei usar a manobra Cumpadi Washington na dança da cordinha pra me livrar da coroa, mas ela sacava mais braços que vilão do Homem Aranha.

Tentando me esquivar, minha cabeça quase derrubou o filtro de barro.
 A centopeia escorou-me entre a pia e a batedeira e adentrou taradona e fervorosa com a língua igual de um tamanduá micareteiro.
- Dona... Dona... DONA...

Só largou assustada quando ouviu o grito que espancou a escuridão feito um relâmpago:

- “REGINA!"

De medo, meu cu fechou feito bolinho primavera.

A voz do Seu Mausoléu veio acompanhada de Leite de Rosas, rouquidão e pigarro.

- “Traz meu xarope, por favor!”
- “Já vou, meu bem!”

Ela se enterrou em seus panos e partiu sem me olhar, um tanto frustrada, um tanto frustrada.

Entornei o vinho branco na garganta de uma vez só:
- Que, que isso! Mentaliza o azul... o azul...

Achei por bem ir embora para casa, mas quando voltei para o quarto, a porta estava trancada. 
Gabi estava lá dentro junto com C.B, meu sapato, celular, carteira, etc.

- C´est très magnifique!

Tive que dormir no sofá ao lado das cacatuas, que não ousaram falar nada, mas cochicharam e riram da minha cara durante o resto da madrugada.

No dia seguinte, na hora do almoço, como se nada tivesse acontecido, todos provaram a suculenta língua da Dona Regina que sinceramente... 
Era boa pra cacete!

CURTIU?

Compartilha com os amigos! Dá essa moral ae...

Um comentário: